segunda-feira, 4 de setembro de 2017




Meu primo Padre Ruas



Maria J Fortuna

                    Um dia ele apareceu lá em casa. Ainda moço, magro, um tanto pálido, estatura média, olhos castanhos de grande profundidade. Usava batina bem cuidada. Meu pai nos apresentou: - Esse é o meu sobrinho, filho da tia de vocês, a Emília, portanto, primo em primeiro de vocês.  Era o Padre Luiz Augusto de Lima Ruas, mais conhecido por Padre Luiz Ruas. Ele sorriu timidamente, apesar de que lá em casa, para nós católicos, todo padre ser autoridade que devemos respeitar por ser ungido pelo Sacramento da Ordem.  Mas ele me pareceu alguém muito humilde, que comungava com o silêncio...Fora buscar sua mãe, tia Emília, hospedada lá em casa para tratamento oftalmológico no Rio de Janeiro. Ambos morando em Manaus, no Amazonas.  Mas ninguém nos falou do poeta que estava diante de nós! Meu pai, com ar malicioso, disse apenas que ele era um padre brilhante, mas pertencia, ao que ficou sabendo, ao Clube da madrugada... O primo nos ofereceu seu livro Linha D´Água. Nele passei os olhos rapidamente. Mas acabei por herdar esta relíquia, visto que todos os meus, na atualidade,  já se foram. Não podia imaginar que estava diante da obra de um poeta imenso, intenso, transcendente! Um gigante da poesia! “Um dos maiores poetas do Brasil e um dos mais desconhecidos”, como disse o doutor em letras Roger Samuel*.
                    Meu primo era sacerdote, jornalista, radialista, ensaísta, professor de literatura e línguas e sobretudo poeta! Isso tudo descobri agora, depois de mais de sessenta anos do dia em que o vi pela primeira e última vez, na sala do nosso apartamento na Tijuca. Ele viera buscar sua mãe de volta à Manaus depois de um tratamento oftalmológico.  Sei que Luís sempre foi um filho único devotado a ela, já viúva, até que ela se fosse desse mundo.
                    Soube que durante o regime militar, Padre Luís foi vítima de perseguição implacável por causa das posições políticas que defendia, e amargou dias de prisão com diversos companheiros.   O tal Clube da Madrugada que frequentava assiduamente, congregava as maiores cabeças da literatura de Manaus. O Clube Foi criado em 22 de novembro de 1954 e é uma associação literária artística brasileira em Manaus.  E não o que meu pai insinuava com seu sorriso malicioso. O que não diria se soubesse que Padre Ruas frequentava bares e era admirado pelos alunos da Universidade Federal do Amazonas, como o padre rebelde? Além disso ele era crítico de cinema e literatura, escrevendo sobre o assunto em diversos jornais de maior circulação da localidade. Foi professor de psicologia na Faculdade de Filosofia e de francês na Escola Estadual.
                    Os anos se passaram, fui para Minas e deixei o livro do meu primo para trás sem nunca o ter lido.   Publicou outras obras,  além de Linha D´Água (1970), coletânea de contos, considerado pelo acadêmico amazonense Elson Farias, como “livro legendário”, Os graus do poético (1979), Poemeu(1985), Cinema e Crítica Literária, e o incrível livro de poesia, que me deixou estarrecida pela sua beleza:  Aparição do clown(1958) . Este último encontrei procurando no Google por Luís Augusto de Lima Ruas, que é seu nome completo. Encontrei um Ensaio, de autoria do Dr Rogel Samuel, a respeito da Aparição do clown que me facilitou, em muito, a leitura desse poema, permitindo que eu inflamasse meu coração em cada verso... A interpretação para mim está mais que correta.  Em seguida procurei por Linha D´Água na minha estante e não encontrei mais o meu velho exemplar herdado.  Fiquei estupefata! Agora estou buscando todos os seus livros em sebos, por esse Brasil a fora... Só que aquele volume, desaparecido por negligência minha, estava autografado... coisa que não mais vai acontecer, desde que meu primo se foi desse mundo no ano 2000 aos 69 anos.  Busco, também, o livro Lima Ruas, itinerário de uma vocação (2004), onde Roberto Mendonça analisa aspectos significativos das obras de Padre Ruas em dois volumes. Sabe Deus se vou encontrar!  Não há mais membro próximos da família Lima em Manaus.
                    Por que ignorei tanto a obra do meu primo durante tantos anos? Por que dei tanta importância aos letrados da família Fortuna, lado materno, e tratei com tanta indiferença parentes do lado paterno? Talvez por ter sido criada distante dos Lima e muito próximo aos Fortuna. Pode ser também a pouca afinidade que tive com meu pai.  Ou talvez a distância física dos parentes desse tronco familiar. Eles sempre moraram no Ceará e  Amazonas e os parentes do lado materno em São Luís do Maranhão e no Rio de Janeiro onde vivi.  Fora os trinta e sete anos que morei em Minas. Mas não vou desistir! Coisas que acontecem fora do tempo e do espaço.... Aqui está uma amostra da Aparição do clown, que penetrou em meu coração com toda força e me deixou inebriada!

Olha a brisa dançando na folhagem!
 É na brisa que o pássaro virá!
 Virá com a língua de fogo
E os cornos septiformes!
 Olha as luzes!
 Vê as cores, ouve os sons! Tudo recomeça
A vibrar e a dançar.
 É o tempo. Olha a estrela de ouro e de basalto.
 O pássaro virá...






*ROGEL SAMUEL é Doutor em Letras e Prof. Aposentado da Pós-graduação da Faculdade de Letras da UFRJ. Autor de vários artigos e livros, dentre os quais o Novo manual de teoria literária. Petrópolis, Vozes, 4a edição. Pássaro em voo, leitura de Aparição do clown, de L. Ruas, publicado originalmente em “Leituras da Amazônia” da Universidade Stendhal-Grenoble? U.A Ano 1, abril de 1998







quinta-feira, 17 de agosto de 2017





Vovó das nuvens


Maria J Fortuna



      Ela vivia numa aldeia de pescadores em São José de Ribamar, no Maranhão. Todos a conheciam por Maria Velha. Impressionante sua casa de pau-a-pique que só tinha duas paredes para que pudesse amarrar a rede. Pau-a-pique é uma das construções das mais comuns para a enorme população indigente,  no interior do Maranhão.

     Tozinho, o filho pescador de Maria Velha, havia levantado as três paredes de vigas de bambu, amarrados entre si, cujas partes vazadas eram cobertas por barro. O telhado era de sapé com palha. Sapé é uma espécie de vegetação não própria para alimentação dos animais.  Mas Maria Velha não queria mais que três paredes e um teto de palha para viver. Quando se levantava, costumava enrolar e amarrar a rede desbotada e cheia de remendos,  transformando-a  numa trouxinha colada à parede. Então, ia para o fogão de lenha que ficava bem ali, perto da rede, no chão de terra batida, onde cozinhava sua refeição e fazia a marmita do filho que ia enfrentar, feito guerreiro, o mar revolto em busca de alimento.

        Ninguém sabia a idade da velha senhora. Talvez não fosse tão idosa. As pernas eram ainda muito firmes e os braços fortes, com mãos calosas capazes de pegar na enxada para capinar o mato que crescia em redor da casa. Se é que se podia chamar aquela construção de casa. Só tinha três paredes e um telhado de palha.  No entanto, junto ao fogão de lenha, as panelas de alumínio brilhavam ao sol de tão limpas e areadas com a areia da praia. Em cima de uma velha cadeira, roupas lavadas no rio. Tinha como seu único móvel a mesa construída pelo filho, usada na preparação do alimento.  Na hora do almoço, ficavam ali Maria Velha e seu rebento sentados no chão, fazendo pequenos bolinhos de comida com os dedos, quase sempre de peixe e pirão bem temperada com vinagreira e joão-gomes que crescia abundantemente por ali.    Tinham um tamborete pequeno e baixo que chamavam de mocho e era oferecido aos visitantes. Pessoal vizinho  dos dois sentava mesmo era no chão. Os visitantes eram outros tantos que viviam em casa de sapé e terra batida.

       Maria Velha, cheirando a jasmim com canela, partia para o trabalho, quase que de sol a sol, menos no domingo quando ia à Missa na Igreja de São José.  Lavava e passava a roupa na casa das sinhás. Falava pouco, tinha poucos dentes, mas gesticulava e caminhava rápido. Chegava sempre descalça. Mas como causava má impressão a certas patroas, ela calçava as alpargatas feitas de pneu e couro, compradas na Venda do Seu Raimundo, assim que avistava a casa grande onde ia trabalhar.

                Coisa que aquela mulher de fibra não tolerava era ver o filho bêbedo! Tozinho gostava de uma cachacinha. Ajudava a puxar a canoa e a enrolar a rede de pescar. Mas chegava cabreiro em casa... Olhando a mãe pelos cantos dos olhos. Maria Velha dava-lhe uma cheirada e se sentisse cheio de álcool pegava uma vara de marmelo e “metia o couro” no jovem e possante filho.
- Saia praga, sai insprito imundo, ia dizendo a cada lambada. O filho ia gemendo e pedindo desculpas. Pensava sempre que o moço estava possuído pelo maligno.

                Além do que a cachaça podia levar o guapo à “casa das muié dama” pra pegá doença. Tinha que arranjar uma cabocla forte pra casar. Contudo,  fazia-lhe um chá de boldo pra curar a ressaca. Mas eram raros os dias que Tozinho fazia aquilo de se exceder na cachaça.

Por trás do sorriso transparente daquela perfumada criatura, apareciam seus dois dentes.  Ela quase sempre sorria, despreocupada com sua aparência!  Era feliz! Acreditem, ela era feliz! Por quê? Por dois motivos: nada tinha de material para ser roubado e lamentado, a não ser as redes dela e do filho, e as panelas de alumínio. Se ficava doente, tratava-se com ervas. O Posto de Saúde era muito longe...

Em segundo lugar, era feliz por causa das nuvens.... Elas eram tudo de bom para a velha senhora! Ficava deitada na rede por muito tempo contemplando aquelas formas brancas e voadoras que iam se desmanchando devagarinho, e dali formavam várias figuras! Ela via borboletas, cachimbos, gente nova e velha, bichos, flores, frutos, peixes e muitas outras formas familiares... Via carneirinhos, espumas do mar e, às vezes, monstros tenebrosos, mas que logo se transformavam em flor ou pássaro e vice-versa.  Tudo acontecia naquele fundo azul que, no adiantado das horas, ia aos poucos escurecendo... E ela não sentia o passar das horas... O céu levava com ele as nuvens e trazia estrelas. Não tinha muita afinidade com aquele pisca- pisca de pontos luminosos. Era muito misteriosa, à noite, com seus tesouros. Estrelas são joias que ficam brilhando e piscando, não fazem mais nada, pensava. Mas não desfazendo do céu à noite, compreendia mesmo o código das nuvens ... Elas,  as mágicas nuvens dançantes  haviam lhe ensinado algo de muito especial.  Algo que tinha sempre presente no coração: que tudo passa e vai se  transformando.... Nunca mais haveria uma borboleta desenhada daquela  forma com espuma fofa e branca, por exemplo...  E rapidinho ela se transformara numa árvore.... Depois numa forma esquisita, que ela não conseguia decifrar.... Tão misteriosos quanto as estrelas eram os raios que riscavam o céu nas frequentes chuvas no Maranhão.  Um deles levou embora seu vizinho Maneco. Quando o céu começa a ficar cinza,  apaga as nuvens, observava.   Mas quando isso acontecia, ela ficava muito tempo ali, encostada numa das três paredes da sua casa, quietinha, em sinal de respeito àquilo que não podia compreender ou controlar. Durante um temporal deitava-se na rede, fosse que horas fosse, e ficava ouvindo a chuva caindo sobre o telhado cheio de goteiras. Mas a chuva passava... e as nuvens retornariam...

Como amava o céu azul recheado delas, Maria Velha tornou-se a vovó das nuvens... Era como as crianças passaram a chamá-la, quando sentadas no chão do casebre ouviam as histórias que as nuvens traziam...  Todas olhando para o céu, onde o algodão doce dos anjos se transformava sempre!  Podia não ter muita coisa pra comer, mas tinha sonho... Além disso, aquele torrão azul, onde toda aquela magia acontecia, só podia ser o corpo de Deus, afirmava Maria Velha.

Os adultos quando queriam saber se podiam ou não fazer algo importante pediam a anciã para decifrar o código do algodão branco que passeava no céu naquele momento. Mas além do que pressagiava,  ela costumava dizer:   
- Home ou muié que se procupa com muita coisa nessa Terra é pruquê não óia pro  céu.  As coisa passa... Igualzinho as nuve... Tudo de ruim, até de bom, as coisa passa...


Nesta cidade enorme que é o Rio de Janeiro, quando estou vivendo algo difícil,  procuro o céu, entre um edifício e outro, e ouço a voz de Maria Velha no coração: 
- As coisas passa como as nuve...

segunda-feira, 14 de agosto de 2017


Esta homenagem ao urubu, lembra-me do herói do livro de minha autoria: O pardalzinho desconfiado, cuja a mensagem é desconfiar do falso e dar valor ao que é bom em sua essência!
Lélio Costa da Silva é veterinário. A única coisa que fiquei sabendo a seu respeito. Amei ler o que escreveu sobre essa tão desprezada ave!




O URUBU EM SEU PRÓPRIO DIREITO
Lélio Costa e Silva


As vozes da natureza mandam dizer que não sou eu o símbolo do azar.
Quero continuar a remexer a cabeça nua nas carnes putrefatas, executando a minha tarefa biológica, mas anseio também ser entendido como uma ave super-higiênica, integrante das cadeias alimentares.
Quero continuar a por meus ovos nos buracos e pedras dos morros, mas não desejo ver meus filhotes apedrejados e mau vistos pela espécie humana.
Quero abrir as asas ao sol e voar em espiral com os meus companheiros e mostrar que a minha plumagem pode ter o mesmo esplendor das outras aves irmãs.
Quero dispensar do meu desjejum as carcaças contaminadas pelos venenos acumulados, espalhados pelo ser humano - verdadeiras bombas de efeito retardado, que destroem a mim e a toda vida do planeta.
Quero desconsiderar a vergonha e o constrangimento das pessoas com a minha presença em frente às suas casas - “todo urubu tem que ir onde o lixo está”.
Quero entender essa ecologia urbana, onde o lixo se acumula cada vez mais em lotes, ruas, praças e margens de rios aumentando excessivamente o meu trabalho.
Finalmente, agradeço os adjetivos concedidos à minha espécie: lixeiro da natureza, sarcófago alado, inspetor do lixo, necrófago...
E, em nome de uma possível linguagem universal, deixo aqui o meu último pedido:
- Pelo trabalho dobrado e pelo risco de vida, quero também receber as minhas horas-extras e o meu adicional de insalubridade.



sábado, 12 de agosto de 2017







                    O jornalista, escritor e poeta Mhario Lincoln  escreveu um comentário no seu Jornal Literário sobre este livrinho infanto-juvenil,  que muito me honrou. Esta obra ilustrada por Regina Miranda foi lançada na cidade do Porto em Portugal  em 2010 e adotada no ano seguinte para as Escolas Publicas de Belo Horizonte o que me deixou muito feliz! 






quinta-feira, 10 de agosto de 2017

                      O texto a seguir foi publicado na Antologia A cidade em nós da Editora Rosane Zanini, autora de vários livros em prosa e poesia. 
                     A Antologia em três línguas: alemão, espanhol e português, trata da cidade onde nasceram ou vivem. os 12 escritores que participam da mesma. Berlim, Zurich, Stuttgart, Paris e  São Luís do Maranhão. Mas o importante para Rosane Zanini é a cidade interna. O sentimentos, as emoções que unem as pessoas e são universais!




                                                   Minha Cidade

                                                                                               Maria J Fortuna


                    A cidade da gente é aquela que tem um cheiro especial, luminosidade só dela, clima que nos envolve desde os mais remotos anos e permanece na memória de cada célula. Assim sendo, dentro do meu coração está, linda e inteira, São Luís do Maranhão, uma doce Ilha no Nordeste do Brasil e Terra que me viu nascer!
                    A mais significativa lembrança da minha infância é o quintal do sobrado, onde comecei a desenrolar o fio de minha vida – o casarão de azulejos azuis que possuía mirante e porão, como muitas das antigas construções maranhenses. A cadeira de embalo, onde me deitava ao colo do meu avô, olhando as árvores que habitavam o grande quintal e sentindo o perfume das goiabas que caiam na sombra de suas copas cheirosas. O barulhinho do córrego, as margaridas e açucenas, compunham meu mundo encantado! Assim como o alento do sol e os mistérios das chuvas. No azul do céu meu avô apontava nuvens, chamando-as de urso, girafa, elefante e ainda havia o canto dos passarinhos, de modo especial do bem-te-vi, sabiá e alguns canários. Pombos e pardais gostavam de pousar nas telhas da casa. Em dias especiais o céu se enchia de carneirinhos... então meu avô desenrolava as histórias que moravam em sua alma bondosa. Era como se abrisse o peito, donde ecoava sua voz grave, e de lá saísse voando um panapaná* de borboletas azuis! Algumas, aos três anos de idade, eu não compreendi muito bem, mas eram como se fossem pétalas de flor retiradas uma a uma, até chegar no pistilo redondo, que esparramava seu pólen e fecundava mais e mais histórias...
                    Lá pelas tantas horas da manhã, recendia o cheiro dos pratos gostosos vindos da cozinha, onde eram preparados os mais saborosos quitutes como: arroz de cuxá**(mistura de gergelim, farinha seca e camarão seco e pimenta de cheiro). O ingrediente especial - a vinagreira – hortaliça africana, muito comum no Maranhão, dá o toque especial ao prato, ou arroz de jaçanã, uma ave nativa feita garça. A fritada de bobó de camarão e o cozido, não podiam faltar, entre outros pratos típicos da Ilha de clima tropical, quente e úmido. Enfim, abundavam frutos do mar no cardápio.
                    Lá pela tardinha, eu, minha irmã e a empregada da casa, íamos à Beira Mar, ver os navios que ancoravam distantes, por não haver, naqueles tempos, porto na Ilha. Havia tarde em que a gente ouvia música partindo do navio, o que estimulava nossa fantasia, de que poderia estar havendo algum baile. Ao pôr do sol as águas do mar dançavam, refletindo os últimos raios de sol. O inconfundível cheiro de maresia tornava-se mais forte à medida que ia escurecendo. E o mar ficava escuro, batendo na muralha de pedra,  quando não havia lua, aumentando seu mistério. Em outros pontos da Ilha, os pescadores estavam chegando de longa pesca, com camarão, peixe pedra, caranguejo e outros frutos do mar. Ali, conforme a maré, a gente conseguia compra-los fresquinhos. Às seis horas da tarde, o perfume de rosas, jasmins e incenso, anunciando a hora do Ângelus. As crianças partiam para o banho. Hora de receber o pai que chegava cansado da labuta diária. O jantar era servido. A empregada da casa tratava de arrumar a cozinha depressa, para finalmente descansar, contando historinhas de fantasmas e curupiras***para as crianças da família. Eram de arrepiar os cabelos! Depois cada um ****armava sua rede e o sono chegava bem cedo.
*Panapaná: coletivo de borboleta na linguagem indígena.

**Arroz de cuxá: um que pode ser considerado símbolo da culinária maranhense. Seu preparo mistura ingredientes como camarão seco, cuxá (chamado também de azedinha, quiabo azedo e vinagreira) e gergelim.
Vinagreira: hortaliça de origem agricana, com sabor acre, muito comum no Maranhão.
***Curupira – Ser fantástico que, segundo a crença popular, habita as florestas e é o protetor das plantas e dos animais. Referido desde o século XVI, o curupira é descrito com a estatura de um menino com os calcanhares para frente: suas pegadas enganam os caçadores e seringueiros, que se perdem nas florestas. O curupira também faz as pessoas se perderem imitando gritos humanos.
****Armar a rede: abrir a rede que fica pendurada no quarto dos solteiros, para dormir.

                     Quando comecei a frequentar a escola, fiquei sabendo mais a respeito da minha Terra Natal tão cheia de poesia!  Ela foi habitada por índios Tupinambás e fica entre a baía de São Marcos e São José de Ribamar, no Atlântico Sul. Nesta última, costumávamos passar as férias
escolares. Em 1612 chegaram os franceses e o nome São Luís foi colocado em homenagem ao Louis IX, rei de França. É a única capital brasileira colonizada por franceses. Por isso temos algumas palavras derivadas do Francês.  Esteve também sob o controle holandês 1641 a 1644, quando a economia tinha por base a exportação de cana de açúcar, tabaco e cacau. Por volta de 1860 exportava algodão para a Inglaterra. Depois vieram os portugueses que sempre brigaram pela posse daquela Terra e foram responsáveis por sua edificação. Hoje em dia a pecuária, agricultura e pesca artesanal fazem parte da economia do Estado maranhense. Além de ter aumentado a produção de soja, arroz e milho, a mandioca é muito cultivada.
                    Quando estive na cidade do Porto, Portugal, contemplei os azulejos da minha Terra nos velhos casarões daquela cidade! Talvez seja pela predominância do azul, ton sur ton, que até hoje a tenho como cor predileta para pintura de casas e edifícios. Um dia, já na década de 90, quando fui à casa de uma família em Belo Horizonte, Minas Gerais, lamentei profundamente ver os azulejos de São Luís, decorando a copa. Por isso São Luís corre o risco de perder o título de “Cidade do Azulejos”, como é conhecida por muita gente. As demolições hoje em dia são grandes e de muitos casarões foram retirados azulejos originais.
                    A Ilha é abastecida pelo rio Itapecuru. Existem ainda os rios Bacanga, cujo parque se encontra preservado até hoje e o rio Anil. Quando íamos para nosso sítio, um pouco afastado da Capital, eu me deliciava ao ouvir as canções das lavadeiras de busto nu, batendo roupa ensaboada nas pedras e taboas de madeira, a beira das águas que corriam por aquelas terras. O banho de rio, por causa do perigo de afogamento, era supervisionado por nossas mães. Quase sempre perdíamos uma peça da roupinha branca com que nadávamos ali, quando a correnteza se tornava mais forte. Quando comecei a ler Monteiro Lobato, tinha medo de que aparecesse por lá um peixinho atrevido que se apaixonasse por mim e me pedisse em casamento. Como aconteceu com a menina Narizinho, uma de suas principais personagens. Não era ideia mito boa ser carregada por aquelas águas escuras e frias, até o castelo do Príncipe que morava em suas profundezas, pensava eu. Do arrepio das águas geladas ao medo do peixe real, havia arrepios e tremores, até que minha mãe me enrolasse numa toalha macia e felpuda.
                   No sítio havia frutas maravilhosas, típicas da Mate Atlântica: murici, bacuri, abricó, jacama e outras. Era como se os deuses, brincando de guardar segredo, tivessem soprado delicias dentro de cada uma delas! No pós-guerra mundial, onde a recessão foi grande, meu pai ficou desempregado e, graças aos doces que minha mãe fazia daqueles frutos maravilhosos, sobrevivemos. Ela os vendia aos aliados que desembarcavam no estratégico aeroporto de São Luís.  Dentro de um velho tanque emborcado, de azulejos danificados, eu ficava brincando de boneca com a filha da caseira, ouvindo os babaçus caírem nas águas do poço.
          ***** - A Mãe D`Água está dormindo... falava a menina, falava a menina, e eu torcia para que o barulho dos babaçus não a acordasse a mulher peixe encantada**** Sabia que, além dos poços, ela costumava frequentar a Lagoa Janssen, com seis mil metros quadrados de área e diversos manguezais. Toda Mãe D´Água gosta de poços e lagos, dizia minha companheira de folguedos.

*****A Mãe d´Água - Trata-se de uma figura com mistura de mulher com peixe. No rio Itapecuru, ela aparece ás suas margens. Carrega crianças deixadas pelas mães na beirada. Penteia seus longos cabelos com pente de ouro recoberto de pedras preciosas que enlaçam os rapazes que são levados para o fundo dos rios e nunca mais voltam.

                    Aprendi que no século XVIII, fase de ouro da economia maranhense, São Luís viveu grande efervescência cultural.  Era a cidade brasileira que mais se relacionava com as capitais europeias e com outras capitais do Brasil.  A literatura e a poesia germinaram com grandes escritores e poetas como Graça Aranha, Raimundo Correia, Humberto de Campos, Coelho Neto, Gonçalves Dias Mais recentemente tivemos Josué Montello e Ferrreira Goulart, dentre outros. Não é à toa que São Luís recebeu o epíteto de Ilha do Amor, por tantos famosos da literatura que a louvaram em prosa e verso. Nesta Capital considerada na época de Atenas Brasileira, foi editada a primeira gramática portuguesa no Brasil. Mesmo no século XX estava eu em casa do meu avô, com grande laço de fita na cabeça, declamando poesias em cima do piano. Eram os saraus que minha família proporcionava aos intelectuais frequentadores do sobrado. Ali nasceu um jornal literário famoso no Maranhão – O Ateneu.
                    Em 1997 quando a cidade foi tombada pela UNESCO, considerada Patrimônio Cultural da Humanidade, eu tinha vindo para o Rio de Janeiro e depois para Minas Gerais.  Além de ter deixado toda aquela magia, tinha saudades das festas da Ilha. Particularmente o Bumba meu boi, tradição folclórica afro indígena, que aflora no mês de junho. Junto com as festas juninas em louvor a Santo Antônio e São João. Estas festas iluminam São Luís, por várias noites! Minha mãe costumava compor pequenas canções para que meus dois irmãos participassem do evento. Eu me lembro de um pedacinho de uma delas: “Boi mimoso do curral, quem te ensinou a dançar, foi no palácio da rainha, onde o rei foi passear...! Na minha memória poética ainda sonho com o boi vestido de negro com miçangas prateadas e douradas, cheio de esvoaçantes fitas coloridas nos chifres, dançando ao clarão da lua. Os homens abriam a roda cercando o boi que dançava girando. Alguns eram homens rudes, bêbados de tiquira******, que ficavam alegres com suas fantasias multicores, do mesmo tecido e enfeite da roupa do boi. Outros faziam parte da festa usando penas de índio. Eram enormes os cocares! *******Dançavam até de madrugada ao redor do boi, que, através dos movimentos do homem que o representava, fazia evoluções em círculo, enquanto alguém contava sua estória. Dependendo do lugar, iluminado por uma fogueira. Era o tempo em que a gente ainda contava as estrelas perdendo a conta...

******Tiquila: bebida que surgiu da tradição indígena de aproveitar a mandioca para quase tudo, inclusive para fazer agua ardente
*******Cocares: Um leque de pena que os índios colocam em suas cabeças. As disposições das cores do cocar não são aleatórias. Além de bonito, ele indica a posição do chefe dentro do grupo e simboliza a própria ordenação da vida em uma aldeia Kaiapó.
Candomblé: religião afro-brasileira.
Assombração: Alma do outro mundo

                    Em julho, durante as férias escolares, nossa família partia para São José de Ribamar. Lá eu esperava ansiosa pela Festa do Divino em louvor ao Espírito Santo, culto marcado pelo sincretismo religioso. A tradição foi trazida pelos portugueses e recebeu contribuição de culturas indígenas e africanas. Começa na Igreja Católica e termina no Terreiro de Candomblé. Eu adorava ver as crianças vestidas de Imperador e Imperatriz, herança portuguesa, com a imagem da pomba branca na almofada de veludo com a figura do Espirito Santo bordada na bandeira branca e vermelha. Há partilha de alimentos durante o evento. A criançada fartava-se de bolos e doces com glacê colorido e guaraná Jesus, uma refrigerante cor de rosa que só tem no Maranhão. Pela fé do seu povo cuja a etnia vem do branco (em sua maioria portuguesa) índio (povo nativo) e negro (que veio da África para ser escravo), não conheço povo mais messiânico do que o maranhense! Quanto ás festas profanas o carnaval era a mais famosa na Ilha. Havia muita alegria pelas ruelas e ladeiras estreitas da cidade, durante aquela festa! Muitos blocos de rua e alegria nos clubes! As crianças tinham medo de uma figura típica do carnaval maranhense – o fofão! Eram foliões com macacões estampados e fofados, com máscaras horrendas, grunhindo sons igualmente horríveis! Passavam o carnaval pulando, gemendo e se divertindo com o medo dos pequenos. Pareciam assombrações! Quantas vezes, quando menina, eu tinha pesadelos com os fofões! Lembram palhaços da Comédia Del Arte. Essa tradição é bem forte no Maranhão, onde os blocos populares se misturam aos brincantes e ás bandinhas tradicionais. Fiquei sabendo que os carnavalescos fofões estão sendo proibidos atualmente no carnaval maranhense, o que vai descaracterizar bastante a tradição desta festa na cidade.
                    São Luiz era muito católico em meus tempos de menina! As Igrejas coloniais superlotadas para as Missas de domingo. Até hoje gosto de entrar na Igreja lembrando o perfume das angélicas misturado ao incenso do altar-mor!  Ainda ouço a voz do padre, rezado em latim, ecoando nas encruzilhadas do meu passado.  Durante a Missa ou Adoração ao Santíssimo a magia dos santos me deixava completamente embriagada de misticismo! Lembro-me devota, com a cabeça coberta por um véu branco, acompanhando os meus pais nas procissões. Ou no meio das meninas vestidas de anjo.  Não tinha procissão sem anjo. Minha mãe de matilha preta, dedilhando o terço e meu pai segurando uma vela, todo de branco em seu terno de linho. Durante o Natal havia a Pastoral onde as crianças vestidas de roupas típicas de diversos países, em par, adoravam Jesus Menino. O sincretismo religioso estava sempre presente. Havia grandes “Terreiros” em que nossa empregada cabocla, no meio da noite ou para a madrugada, se unia em surdina, aos irmãos do Tambor de Mina e ao Tambor de Crioula, religião afro-brasileira. O Maranhão foi importante núcleo de atração de mão de obra africana, sobretudo durante 1750 a 1850. No Terreiro, as pessoas entravam em transe e possessão. Diziam que elas estavam “atuadas”... o que dá na mesma. Certo dia implorei aquela moça que me levasse com ela para a festa do Tambor, no que ela concordou desde que eu não dissesse a minha mãe.  Pude então contemplar de perto, com os olhos cheios de surpresa e encantamento, a dança daquelas mulheres com saia de chita rodada, cantando misteriosas cantigas numa língua que eu não compreendia, girando ao som das batidas dos tambores tocados pelos homens. Tudo aquilo acelerava meu coração infantil, no meio de uma clareira no mato. Era uma experiência fascinante! Guardo com carinho, uma bolsinha de fibra de buriti até hoje usada para produzir peças artesanais como tapetes e chinelos. Assim como o Tambor de Mina, no Tambor de Criola as pessoas também se reúnem em círculos que chamam de Terreiros, e é de origem afro indígena, em homenagem ao santo negro São Benedito, muito venerado pelos católicos e umbandistas maranhenses. O toque pitoresco é que as mulheres, saias rodadas e torços na cabeças, cumprimentam umas ás outras pela “umbigada”. Quero dizer, batem com a barriga, na que está no centro da roda, convidando-a para dançar. Assim por diante. Essas são doces lembranças...
                    Ah! São Luís! São Luís! Tive que deixá-la ainda menina em botão, mas quando retornei há uns dez anos atrás, me vi envolta pela mesma atmosfera de sonho que me viu crescer até os oito anos de idade. Lá estão as palmeiras, ladeiras e ruas com nome pitoresco como: rua das Flores, dos Enforcados, do Alecrim, da Alegria, da Saudade.... Creio que fruto de um povo que vive em nostalgia romântica e é profundamente sonhador e poético. Como diz o grande poeta maranhense Gonçalves Dias:

                    Em cismar sozinho, á noite,
                    Mais prazer eu encontro lá
                     Minha Terra tem palmeiras
                     Onde canta o sabiá
                    
                    Não permita Deus que eu morra,
                     Sem que eu volte para lá
                     Sem que desfrute os primores
                     Que não encontro por cá;


                    Por mais que eu tenha trilhado outros caminhos neste imenso Brasil, jamais a esquecerei, tão impressa se encontra em minha alma! Sempre a reconhecerei! Basta recordar o cheiro e o sabor dos alimentos, o colorido da paisagem, a chuva de hora marcada, o sotaque tão familiar e, sobretudo, o toque afetivo dos conterrâneos! 

                                          






Documentário São Luís do Maranhão

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