sábado, 10 de julho de 2010

A chupeta


Maria J Fortuna



- Quero meu pipo, gritava a criança no colo do irmão mais velho. - A barata fez coco nele todo, que pena... Olha!O menino grande apontava para o objeto em cima da geladeira. Pipo é nome de chupeta no nordeste. Especificamente no Maranhão.

- Pega ele! Gritava a criança, aumentando o volume de choro.

- Assim mesmo, cheio de coco de barata?

- Não! Não quero, gritava mais alto, a menina em desespero, decepcionada com o que via.

- Então deixa o pipo aí, falava o irmão mais velho.

- Mas eu quero! Insistia a menina.

- Cheio de coco de barata?

- Não quero não! Soluçava bem alto a criança.

Já estava roxa a pequena de tanto chorar e a vozinha já rouca. Até que começou a ficar com sono e se rendeu a ele, exausta.Ultimamente aquela cena era cotidiana. Hora de largar a chupeta. A mãe havia pingado cera de vela naquela borracha macia. E quando a repugnância venceu a vontade mastigar a chupeta , uma forte anorexia abateu a menina. Às vezes, comia arroz com manteiga. Era só. A enurese também se manifestou. Passava as noites dormindo em rede, com uma enorme bacia embaixo, para aparar o xixi noturno. A menina, às vezes, chegava a sentir a aquela aguinha morna saindo dela. Depois, ficava muito frio. Não havia Papai Noel que a fizesse parar de urinar na rede. Ela foi apelidada pelos irmãos de Maria Mijona.Foram momentos dramáticos aqueles! Mas o que é um pequeno objeto de satisfação oral para uma criança? Por que retirar daquela forma perversa seu primeiro deleite oral? Diversas vezes, Maria procurava sua chupeta camuflada e repelente. Havia um clima de sado-masoquismo no ar. Havia sempre espectadores na hora do suplício! Uns olhavam com cara de dó; outros de maldade mesmo. Alguns riam e outros tentavam confortar a menina.De qualquer maneira a garota parecia inconsolável, porque quem sempre a consolava era a chupeta.Eu disse quem porque aquele objeto de plástico, com uma borracha macia na ponta, representa para um número significativo de crianças , principalmente as mais solitárias, o substituto materno. A chupeta acaricia-lhes a língua, descobrindo o macio no céu da boca, onde maravilhosas cosquinhas embalam seus dentes recém-nascidos e lhes adoçam a saliva. Principalmente quando a mãe se declara “seca” e nunca lhes dá o seio. É como peixe que se contenta com aquário, quando na verdade amaria viver no oceano.A menina cresceu e ficou sabendo de como seu pipo foi sabotado. Mas era muito tarde! Aconteceram relacionamentos afetivos em sua vida, mas todos marcados pelo mesmo padrão – queria amar, mas repugnava o objeto de afeto. Era patético! Não sabia o que fazer para conservar seus relacionamentos. Teoricamente sabia o que estava acontecendo, mas não tinha sossego para ser feliz.Atração e rejeição simultâneas. Tocada por alguma coisa que não queria desenterrar e que lutava para emergir e era imediatamente sufocada. Mesmo que quando tocada por algo de bom que a memória aprova. Algo como o cheiro, a textura, o toque que dá sabor às coisas a sua volta. Imaginem... Todo o universo explodia em sua boca em ondas de prazer, trazendo o instinto de vida, e alguém diz que aquele objeto responsável por tanto aconchego, era uma coisa suja, fedorenta, atolada na podridão! Como lutar contra o sentimento de perda que se repetia invocando a perda original? Não havia, nem de leve, a consciência de que as perdas sempre trazem um ganho. Nem que seja este o preço do amadurecimento. Mas nada que nos empurrem goela abaixo pode ser bom.Agora estava ali, sem saber como sugar o leite da vida. Engolir a sensação de vômito no desejo do seio infectado. E retirar os lábios cheios de prazer, do mamilo contaminado por fezes de barata. Amar e rejeitar o objeto de afeto! Arranhando as seringueiras da vida que dão leite de borracha, querendo cuidar de uma gata prenha para ter prazer de ver os filhotes sugando-lhe as tetas. Com uma sensação de ausência, de buraco negro, de vertigem das alturas.Com sensação de infinita incompletude. Coisa esquisita o que uma chupeta com coco de barata é capaz de fazer com a gente...

2 comentários:

MJFortuna disse...

Querida Imãmiga.
Sua sensibilidade, doçura e cuidado para tratar de algo tão delicado e tão precioso, me comove.
Me fez lembrar de uma menina Maria, lá em em São João Evangelista-MG, que chupava pipo - lá chamam de bico.Foi quando ela aprendeu a mentir para sobreviver.Ela o escondia debaixo do colchão.E, à noite, escondido, o chupava.
Com carinho,
a irmãmiga, Lulude Queiroga.

Não consegui postar no blog

Eliane Accioly disse...

Querida Amiga,

me emocionei ao ler "A chupeta". Muitas vezes no consultório nos encontramos diante de casos que dizemos entre corredores: "Este é ontológico". O embuste, a anorexia, a cegueira "do mundo/família". Você vai fundo e me toca nas entranhas.
Grande beijo,

E

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