sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Olhar inocente

                                  Obra de Oscar Pereira da Silva
 

Maria J Fortuna
                    Não havia dúvidas de que o motivo único de sua aflição, era a lembrança do olhar inocente que brotou da moça, como um lírio atrevido no meio do pantanal, naquela terça feira. Foi quando ela estava em seus braços, num motel da Lapa. Deu por isso naquele dia, quando a viu nua, estendida sobre a cama, contemplando com aquele olhar perfumado, seu corpo cansado e recém-desperto. Com certeza aquele jeito de olhar, como se tivesse, de repente, descobrindo um novo mundo, passou a incomodá-lo em suas visitas de terça feira. De um dia pra outro, aquela situação insólita havia acontecido. A moça, com os imensos olhos escuros e aveludados, passou a observá-lo de forma diferente e, também, à distância, até onde sua vista o alcançava, na janela do casarão, num café da esquina, dentro do carro ou durante o tempo em que ele devorava um prato feito no bar da frente. Igualmente era perturbadora aquela ternura, quase maternal, quando o acolhia nos seios floridos, com mais vagar, observando cada detalhe do seu corpo. E em cada gesto macio, aquele olhar vindo não se sabia de onde, acompanhava-lhe o sorriso aflorando-lhe nos lábios. Tudo era flor e isso era muito perturbador para ele! Aqueles olhos traziam algo além da sensualidade ou da expectativa de uma recompensa. E estava nela presente quando o observa passando colônia nos braços e xampu nos cabelos, depois de um banho juntos. E continuou muito mais ainda no encontro seguinte. Ele se encontrava agora completamente desconcertado! Não podia negar que buscava ali os prazeres que uma mulher da vida podia lhe proporcionar, mas também não negava que aquela jovem mulher estava lhe passando uma intrigante mensagem através de um olhar renovado. Sabia que havia se tornado incômoda sua presença ali, na busca de prazeres carnais. Mas, afinal, pensava em estar conformado de que seria apenas isso que lhe oferecia o destino, em seu tempo de inverno. Mas não havia nada mais assustador, para ele, do que sentir algo, além disso. Ali não era ambiente para se deixar nascer uma flor! Isso só podia aumentar feridas. As dele, as dela... E disso entendia muito bem. No seu caso, era só jogar nelas um bálsamo, de vez em quando, deixando jorrar sua tensão num orgasmo, e tudo ficaria resolvido. Mas a presença perturbadora do olhar da moça prometia muito mais do que isso: Promessa totalmente inadequada pela sua inocência...
                    Devido a insistência do fato, restava-lhe reconhecer que aquela ternura tinha vindo com as certezas da alma! Só podia ser. Além de assustado, ficou furioso com isso! Aquela era uma nova roupagem para seus sentimentos que clamavam por cuidado e isso aumentava sua irritação! Pior que não havia jeito de negar que cada um dos dedos de suas pesadas e grosseiras mãos, havia sido beijado por ela, olho no olho... Mas faria tudo para proteger o coração daquele sentimento velado pelo olhar, inesperado e inoportuno. Como é difícil lidar com a ternura dos outros, pensou.
                   Decidiu, enfim, que cada um deles ficaria em seu próprio mundo e seguiria seu próprio destino. Ele com suas lembranças e a velha sensação de que nunca havia amado de verdade, atolado em seus livros, e ela continuaria oferecendo seu jovem corpo para os que podiam garantir-lhe, por alguns dias, a sobrevivência. Afinal, as linguagens eram bem diferentes... Os códigos eram outros... Só não podia deixar-se olhar por ela...
                     Era isso! Mas por que queria sair dali correndo tanto, sem rumo certo? Como deixar assim, de forma tão irresponsável, quem tantas vezes embalou carinhosamente seu corpo cansado pela marcha no tempo? Como foi permitindo que aquilo lhe acontecesse? Sentiu-se covarde, hipócrita, egoísta, mas também frágil, pequeno, carente... Uma formiguinha diante das tramas do mundo... O conflito estava ali, roendo-lhe os pensamentos, despetalando a flor do coração. Depois disso não teve mais sossego! Teve que confessar para si mesmo que aquele olhar inocente estava para sempre dentro dele, dizendo de forma completamente absurda o que ele não queria ouvir. Ou seja, que ela o amava e que, por isso, ele tinha que cuidar daquele amor.
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quinta-feira, 15 de novembro de 2012

O encanto do perecível




                                                                                                                                                      Maria J Fortuna
 

Eu estava em lágrimas, curtindo o fim de um relacionamento, quando alguém chegou perto de mim e me segredou: “- Olha só, as coisas só são boas porque elas acabam...” Passei, então, dias processando essa valiosíssima informação. Fiquei, então, dividida: Uma parte do meu ser refletia sobre o assunto, mas a face exuberante da minha personalidade dizia-me justamente o contrário, ou seja: no fim é onde existe maior tristeza! Onde está o sentido da vida tão cheia de perdas? Essa divisão interna não me deixava descansar um só momento. O apego ao passado, à lembrança sensorial de tudo o quanto eu tinha vivido, não me permitiam domar o coração frente à negação da perda... Tudo parecia com o velho ditado: “Foi água na fervura!” Isso porque o que eu sentia ainda estava bem longe de ser dissolvido, quiçá fazer-me chegar à conclusão de que tudo tinha sido bom porque acabou. A memória ainda me enviava um volume enorme de imagens de um passado recente, acentuando as cores das lembranças que mais me davam prazer, agora transformado em um sombrio coquetel de prazer e dor. E a insistente memória dos fatos passados estava congelando seu conteúdo, não deixando a vida fluir... Não minha vinha à cabeça de que é nesse movimento que mora a beleza de ser e estar no mundo!
Entrei em ebulição! Eu estava ora em chamas, ora num vazio esquisito, gelado, sem rumo. E por mais profanos que fossem meus pensamentos, lembrava-me das palavras de Jesus: “Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só, mas se morrer dá muito fruto.” Mas que fruto eu poderia tirar daquela dor, negando-me a essa transformação que implicava aceitar o fim, a morte daquele relacionamento? Sim, eu sabia que teria que morrer para aquela dor e entregar-me àquela alquimia. Por outro lado, se eu me apropriasse de uma linda borboleta azul, prendendo-a numa campânula de vidro para deleitar-me com sua beleza, fatalmente apressaria sua morte. E foi justamente essa ansiedade, tão cheia de medo e pressa, que havia me separado do ser amado. Medo de perder, pressa em segurar. Um dia, a campânula não resistiu e se quebrou. Então, a borboleta se foi... Ela que tinha sido lagarta e casulo. Talvez não tivesse, de repente, consciência de que já era borboleta para encarar a dor do existir. Até a consciência tem movimento! Então, havia chegado à conclusão de que congelar momentos, separar ganhos de perdas, é algo impossível!
E, assim, pensei no que seria melhor para minorar o sofrimento. No caso, senti que a única saída seria mergulhar naquela dor o mais que eu pudesse. Até a última gota! Viver o luto até a ressurreição! Foi quando a esperança retornou trazendo um pouco de sua luz no final do túnel.
Uma vez me certificando de que tudo está em movimento - até a imagem que tenho de Deus - fui conseguindo descongelar, aos poucos, o passado. Senti que a memória com suas lembranças, passou a receber novas imagens em ondas, que foram se sobrepondo umas às outras à medida que novos fatos foram acontecendo. Tudo em cima da fé de que é enorme o potencial humano para amar, o que representa um consolo, porque o amor se renova. Isso me lembra da dança de Zorba, o grego! Quanto mais dor, mais dança! Mais movimento! Assim, consegui dançar aquela dor lançando flores ao abismo da perda inevitável, ligada à própria vida. E concordei com o que disse o amigo: “As coisas só são boas porque acabam...”

 

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Espaços vazios

         Sobrados de São Luis como a casa do meu avô    
                                                                                 
 
 
 
 
Maria J Fortuna
 
 

Na memória, moram os diversos lugares por onde vivemos. Gosto de caminhar pelos espaços vazios das casas onde eu, minha família ou amigos íntimos habitavam. Ou seja, moradas em que vivi e imagino que estejam agora fisicamente vazias. No meu “passeio” pelas ruas e becos do passado, ignoro as pessoas que depois entraram e se estabeleceram por lá. A começar pela da casa do meu avô, com uma escadaria da qual pulei um dia e a lâmina de ferro do portão afundou no meu dedo, partindo-me o anel, quando eu tinha quatro anos de idade, em São Luís do Maranhão. Um sobrado de tábuas pretas e brancas onde me equilibrei para dar os primeiros passos. Percorro a grande sala, a mesa que uma vez ocultou, sob seu pedestal de madeira, uma aranha caranguejeira. A sala de refeições, o quarto das tias solteiras, onde havia crucifixos pendurados em cada uma das suas quatro camas. Aqueles mesmos de onde arranquei o Cristo crucificado e o coloquei na cama de bonecas. Os armários de roupa que eram cobertos por lençóis quando relampejava. O grande salão de festas com um piano, o quarto de hóspede sempre trancado e o quarto de despejo onde, após a morte do meu avô, eu, calçando sua botina, vi de lá sair uma barata cascuda. A cozinha com forno a carvão e grandes tachos de cobre. Vejo as gamelas de madeira, onde eram feitos doces, principalmente os de goiaba, fruto que caía aos borbotões da goiabeira no grande quintal. Assim como as carambolas. Percorro o jardim carregado de angélicas que perfumavam a casa, principalmente após as 18 horas, quando do rádio a gente ouvia o Ângelus e rezava a Ave-Maria. Até hoje sinto grande nostalgia nessa hora! Lá embaixo, na lavanderia cheia de pedras brancas, jabotis de todos os tamanhos passeavam no lodo e mergulhavam no tanque raso. Uma gata parideira escondia os filhotes no sótão da casa. Sim, sempre vou até lá em pensamento, apesar de não restar mais ninguém dos meus por ali.
Estou certa de que cada um desses espaços em nossa memória oculta períodos da vida, onde a ternura refrigera prazerosamente nossa alma. Essas lembranças ecoam no coração como doce sinfonia. O segundo espaço vazio que costumo frequentar era o da minha amiga francesa Solange de Marbaix, em São Paulo. Todas as vezes que eu ía visitá-la, ao abrir a porta do elevador, sentia o perfume exalado das rosas sobre o aparador junto a porta, dando-me boas vindas. Aquele odor delicioso era reforçado pelos jasmins de sua varanda. Ninguém acreditava que ali, no 14º andar do prédio, havia um jardim suspenso! Em suas viagens pelo sul do Brasil, minha amiga colhia aqui e ali, pequenas sementes e mudas, que levava e plantava em seus canteiros. Tinha rosas, cravos, buganvílias, margaridas, etc
                 Então, em minha viagem pelos espaços vazios, percorro novamente o apartamento de Solange no bairro Campos Elíseos. Por mais que esteja agora habitado, para mim, sem minha amiga, estará sempre vazio. Chegando ao jardim suspenso que ela tanto amava, vejo o grande lagarto de ferro, segurando a porta que refletia em seu vidro a beleza do jardim. Contemplo na sala o velho órgão, vejo o teclado mudo, os livros, as fitas de vídeo ainda em VHS, o tapete persa estendido no chão onde o gato Xuxu, Sagrado da Birmânia, adorava se estender preguiçosamente. Observo os objetos de prata, os cristais que ela dizia pertencer aos bons tempos das vacas gordas, a grande mesa de vidro onde ela trabalhava horas a fio, a salinha-biblioteca onde, na máquina de escrever e depois no computador, ela escreveu o livro sobre Maomé, esse desconhecido, e os Cadernos Sufis. No quarto vazio, a pequena cama cercada por inúmeros armários e uma grande penteadeira. As cortinas em desalinho. Pelo tamanho do quarto, a cama ficava tão pequena que ela dizia ser o quarto de Catarina de Médici. Não me recordo o que queria dizer com isso. Não gosto de contemplar este pedaço da casa, onde ela sofreu dores atrozes de um câncer que a levou de forma fulminante! Ao lado, o quarto de hóspede, com sua imensa janela para a paisagem cinza da cidade. Caminhando por lá chego a ver, em cima da cama, toalhas, sabonete e um ramo de miosótis ou de outra plantinha delicada esperando-me para um banho repousante. E um presentinho na mesa de cabeceira, ao lado de um copo com botões de hibiscus, que no dia seguinte se abriam e enchiam o quarto de luz!
                     Ali eu descansava da viagem, usando sua ducha francesa. E, já pronta, aparecia na sala, onde me aguardava a mesa com toalha de linho branco, um bom vinho e alguns quitutes, dentre eles, deliciosos chocolates. Sem falar da torta de nozes alemã, que ela sabia que eu apreciava! Parei diante do grande sofá de veludo azul-marinho, onde começávamos um papo gostoso em preparação para o grande sarau que viria! O sarau consistia em mostra de poesias, a maioria persas, projetos para suas palestras sobre Sufismo, algum filme interessante sobre grandes balés ou óperas, conversa sobre assuntos esotéricos e depois de tudo, sonolentas, nos retirávamos para nossos quartos. Como não voltar de vez em quando àquele endereço?
Acredito que, quando passamos para outra dimensão da vida, volta e meia visitamos os lugares onde fomos felizes. Se eu fosse ocupar os espaços vazios dos mais de 30 lugares em que morei em São Luís, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, caminhando através da memória, teria a mente ocupada por muito tempo. Mas muitos me trouxeram sofrimento... Esses dois não. Fui muito feliz. São espaços vazios cheios de lembranças que, em especial, gosto de retornar cada vez que a saudade me sufoca. E ainda bem que, nas tensões do dia a dia, tenho para onde voltar...



                                                         Solange de Marbaix e seu gato Xuxú no jardim suspenso


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sábado, 3 de novembro de 2012

O bode Simão

Desconheço o autor da foto

Maria J Fortuna

Eu tinha seis anos incompletos quando vi bode Simão pela primeira vez. Um homem com cara de bonzinho havia amarrado a corda que circulava o pescoço do bicho, num poste, perto da Pirâmide de Beckham, monumento que fica à Beira-mar, em São Luís do Maranhão, onde eu morava na época.

A cara do animal sempre havia me intrigado. Ele parecia com aqueles senhores sérios, dignos de muito respeito. Ainda por cima, tinha barba como o vovô da padaria. Qualquer maltrato àquele bicho sisudo, para mim, seria uma afronta, um desrespeito. O olhar dele me intrigava... Parecia que queria me segredar alguma coisa... Era como se tivesse falando dentro da minha cabecinha:  Me respeite! Me respeite!

- Esse bode quer fazer amizade comigo, pensava eu. Como sempre fui uma criança que se sentia muito só, achei que devia ser amiga e confidente do bode. Afinal sua linguagem se resumia num béééé, que podia dizer muita coisa, só que ninguém compreendia. Parecia o som de quem estava se queixando de alguma coisa.... Seria absurdo desrespeitar aquele bode, pensava eu. Seu jeito lento de comer capim devia ser de bicho velhinho...

Bode Simão, nome dado por mim, passou a fazer parte do meu universo. Era como se ele conhecesse meus segredos e eu os dele, daquele animal quase silencioso que eu visitava todos os dias. Certa vez criei coragem e afaguei-lhe o pelo, que era ao mesmo tempo macio e áspero. A coisa estava ficando séria, porque a amizade estava se estreitando... Ele tinha um odor meio forte, mas não desagradável para mim, sua amiga. Passei a ficar muito preocupada quando chovia, porque o bode podia estar dormindo na chuva e sentindo frio, apesar do calor do nordeste. Ou alguém podia até bater nele, sendo cruel, chutando-o ou jogando-lhe pedras, como infelizmente eu assistia muitas vezes em relação aos gatos, que corriam no muro do quintal.

Havia qualquer coisa de telepático na minha convivência com Simão. A gente se ligava através do pensamento e ninguém sabia o segredo de nossa comunicação.

Era só o caboclo amarrar a corda do pescoço do amigão no poste que eu aparecia na janela de casa, com minha cabeça cheia de cachinhos, esperando oportunidade para me aproximar novamente do bode ancião. Aí começava o diálogo mental:

- Quantos anos tu tens? Indagava-lhe.

- Não sei bem, mas já estou velho... Imaginava a resposta.

- Teu dono é bonzinho pra ti?

- Às vezes...

- Tu tens pai, mãe e irmãos?

- Não sei por onde andam...

- Se alguém te maltratar tu me falas.

- Está bem... Eu falo.

Numa destas ocasiões, eu subi em dois barris que estavam ali jogados. Coloquei um pé num barril e outro pé no outro. E tentei me equilibrar. Mas eis que os barris estavam vazios e cada um rolou numa direção, o que me fez desequilibrar e cair, em cheio,  no chão de terra!  Senti a dor do tombo nos ossos da bacia e fui chorar debruçada no corpo do bode. Só pelo calorzinho daqueles pelos macios e sentindo sua respiração, fui me acalmando... Parei de chorar e limpei os olhos. A dor passou e tudo ficou bem. Olhei para o amigo, que me fitava com aqueles olhos castanhos e mansos e disse:

- Obrigada, viu?

- De nada, espero que fiques bem, imaginei a resposta do amigo.

Num dia claro, cheio daquelas nuvens que parecem carneirinhos, saí para encontrar com o amigo. Quando cheguei percebi que ele estava solto. A corda se arrastava pelo chão. Então me aproximei curiosa e confiante em nossa intimidade. Afaguei-lhe a cabeça como sempre, conversamos um pouquinho, não me lembro de o que, quando ouvi a voz de minha mãe me chamando.

- Fica aí e não foge, viu? Disse dando-lhe costas para ir em direção a entrada de minha casa.  Dei uma olhadinha para trás e vi  o bode Simão, abaixando a cabeça. Começou então a dar uma espécie de ré, o que eu interpretei como timidez. Deixei pra lá e segui meu caminho. Lembro-me direitinho da enorme pancada no traseiro que me fez cair esborrachada no chão tão duro, quanto os chifres daquele bode.  Entre revolta e decepção, vi que o considerado então amigo, havia me traído pelas costas, e com isto veio o fim da nossa grande amizade!

Troquei de mal e nunca mais conversei com ele.   Que marrada inesquecível!

 

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