quinta-feira, 17 de agosto de 2017





Vovó das nuvens


Maria J Fortuna



      Ela vivia numa aldeia de pescadores em São José de Ribamar, no Maranhão. Todos a conheciam por Maria Velha. Impressionante sua casa de pau-a-pique que só tinha duas paredes para que pudesse amarrar a rede. Pau-a-pique é uma das construções das mais comuns para a enorme população indigente,  no interior do Maranhão.

     Tozinho, o filho pescador de Maria Velha, havia levantado as três paredes de vigas de bambu, amarrados entre si, cujas partes vazadas eram cobertas por barro. O telhado era de sapé com palha. Sapé é uma espécie de vegetação não própria para alimentação dos animais.  Mas Maria Velha não queria mais que três paredes e um teto de palha para viver. Quando se levantava, costumava enrolar e amarrar a rede desbotada e cheia de remendos,  transformando-a  numa trouxinha colada à parede. Então, ia para o fogão de lenha que ficava bem ali, perto da rede, no chão de terra batida, onde cozinhava sua refeição e fazia a marmita do filho que ia enfrentar, feito guerreiro, o mar revolto em busca de alimento.

        Ninguém sabia a idade da velha senhora. Talvez não fosse tão idosa. As pernas eram ainda muito firmes e os braços fortes, com mãos calosas capazes de pegar na enxada para capinar o mato que crescia em redor da casa. Se é que se podia chamar aquela construção de casa. Só tinha três paredes e um telhado de palha.  No entanto, junto ao fogão de lenha, as panelas de alumínio brilhavam ao sol de tão limpas e areadas com a areia da praia. Em cima de uma velha cadeira, roupas lavadas no rio. Tinha como seu único móvel a mesa construída pelo filho, usada na preparação do alimento.  Na hora do almoço, ficavam ali Maria Velha e seu rebento sentados no chão, fazendo pequenos bolinhos de comida com os dedos, quase sempre de peixe e pirão bem temperada com vinagreira e joão-gomes que crescia abundantemente por ali.    Tinham um tamborete pequeno e baixo que chamavam de mocho e era oferecido aos visitantes. Pessoal vizinho  dos dois sentava mesmo era no chão. Os visitantes eram outros tantos que viviam em casa de sapé e terra batida.

       Maria Velha, cheirando a jasmim com canela, partia para o trabalho, quase que de sol a sol, menos no domingo quando ia à Missa na Igreja de São José.  Lavava e passava a roupa na casa das sinhás. Falava pouco, tinha poucos dentes, mas gesticulava e caminhava rápido. Chegava sempre descalça. Mas como causava má impressão a certas patroas, ela calçava as alpargatas feitas de pneu e couro, compradas na Venda do Seu Raimundo, assim que avistava a casa grande onde ia trabalhar.

                Coisa que aquela mulher de fibra não tolerava era ver o filho bêbedo! Tozinho gostava de uma cachacinha. Ajudava a puxar a canoa e a enrolar a rede de pescar. Mas chegava cabreiro em casa... Olhando a mãe pelos cantos dos olhos. Maria Velha dava-lhe uma cheirada e se sentisse cheio de álcool pegava uma vara de marmelo e “metia o couro” no jovem e possante filho.
- Saia praga, sai insprito imundo, ia dizendo a cada lambada. O filho ia gemendo e pedindo desculpas. Pensava sempre que o moço estava possuído pelo maligno.

                Além do que a cachaça podia levar o guapo à “casa das muié dama” pra pegá doença. Tinha que arranjar uma cabocla forte pra casar. Contudo,  fazia-lhe um chá de boldo pra curar a ressaca. Mas eram raros os dias que Tozinho fazia aquilo de se exceder na cachaça.

Por trás do sorriso transparente daquela perfumada criatura, apareciam seus dois dentes.  Ela quase sempre sorria, despreocupada com sua aparência!  Era feliz! Acreditem, ela era feliz! Por quê? Por dois motivos: nada tinha de material para ser roubado e lamentado, a não ser as redes dela e do filho, e as panelas de alumínio. Se ficava doente, tratava-se com ervas. O Posto de Saúde era muito longe...

Em segundo lugar, era feliz por causa das nuvens.... Elas eram tudo de bom para a velha senhora! Ficava deitada na rede por muito tempo contemplando aquelas formas brancas e voadoras que iam se desmanchando devagarinho, e dali formavam várias figuras! Ela via borboletas, cachimbos, gente nova e velha, bichos, flores, frutos, peixes e muitas outras formas familiares... Via carneirinhos, espumas do mar e, às vezes, monstros tenebrosos, mas que logo se transformavam em flor ou pássaro e vice-versa.  Tudo acontecia naquele fundo azul que, no adiantado das horas, ia aos poucos escurecendo... E ela não sentia o passar das horas... O céu levava com ele as nuvens e trazia estrelas. Não tinha muita afinidade com aquele pisca- pisca de pontos luminosos. Era muito misteriosa, à noite, com seus tesouros. Estrelas são joias que ficam brilhando e piscando, não fazem mais nada, pensava. Mas não desfazendo do céu à noite, compreendia mesmo o código das nuvens ... Elas,  as mágicas nuvens dançantes  haviam lhe ensinado algo de muito especial.  Algo que tinha sempre presente no coração: que tudo passa e vai se  transformando.... Nunca mais haveria uma borboleta desenhada daquela  forma com espuma fofa e branca, por exemplo...  E rapidinho ela se transformara numa árvore.... Depois numa forma esquisita, que ela não conseguia decifrar.... Tão misteriosos quanto as estrelas eram os raios que riscavam o céu nas frequentes chuvas no Maranhão.  Um deles levou embora seu vizinho Maneco. Quando o céu começa a ficar cinza,  apaga as nuvens, observava.   Mas quando isso acontecia, ela ficava muito tempo ali, encostada numa das três paredes da sua casa, quietinha, em sinal de respeito àquilo que não podia compreender ou controlar. Durante um temporal deitava-se na rede, fosse que horas fosse, e ficava ouvindo a chuva caindo sobre o telhado cheio de goteiras. Mas a chuva passava... e as nuvens retornariam...

Como amava o céu azul recheado delas, Maria Velha tornou-se a vovó das nuvens... Era como as crianças passaram a chamá-la, quando sentadas no chão do casebre ouviam as histórias que as nuvens traziam...  Todas olhando para o céu, onde o algodão doce dos anjos se transformava sempre!  Podia não ter muita coisa pra comer, mas tinha sonho... Além disso, aquele torrão azul, onde toda aquela magia acontecia, só podia ser o corpo de Deus, afirmava Maria Velha.

Os adultos quando queriam saber se podiam ou não fazer algo importante pediam a anciã para decifrar o código do algodão branco que passeava no céu naquele momento. Mas além do que pressagiava,  ela costumava dizer:   
- Home ou muié que se procupa com muita coisa nessa Terra é pruquê não óia pro  céu.  As coisa passa... Igualzinho as nuve... Tudo de ruim, até de bom, as coisa passa...


Nesta cidade enorme que é o Rio de Janeiro, quando estou vivendo algo difícil,  procuro o céu, entre um edifício e outro, e ouço a voz de Maria Velha no coração: 
- As coisas passa como as nuve...

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